Setor farmacêutico e o tratamento de dados pessoais

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) vem publicando uma série de pareceres técnicos envolvendo questões específicas sobre o tratamento de dados. Um exemplo recente é a nota técnica com constatações sobre o tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis no setor farmacêutico, compreendendo tanto as indústrias farmacêuticas quanto as empresas intermediadoras e varejistas (farmácias). O documento relata as investigações que a ANPD conduziu nos últimos anos em relação ao setor e aponta possíveis medidas que serão adotadas pela autarquia.

Início das avaliações

O setor farmacêutico foi um dos primeiros a merecer atenção especial da ANPD por conta de diversas denúncias na mídia, pela provocação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), e em razão de diversas reclamações de titulares feitas à Autoridade.

Nesse cenário, a ANPD se reuniu com associações que representam parcela significativa do setor farmacêutico: Abrafarma (Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias), Febrafar (Federação Brasileira das Redes Associativas e Independentes de Farmácias), Abrafad (Associação Brasileira das Redes Associativas de Farmácias e Drogarias) e ABCFarma (Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico). Por meio dessas reuniões, obteve-se um entendimento de como funcionam (i) os Programas de Benefícios em Medicamentos – PBMs, (ii) os convênios e (iii) os programas de fidelização, seja por ofertas exclusivas, publicidade ou programas de pontos.

Depois dessas reuniões iniciais, a ANPD analisou as políticas de privacidade disponibilizadas por diversas empresas do setor.

Constatações da ANPD

Pontos de atenção elencados pela ANPD

A ANPD demonstrou uma preocupação quanto ao desrespeito de princípios da LGPD, destacando-se os princípios da necessidade, adequação, transparência e finalidade.

Outra preocupação demonstrada pela ANPD refere-se à capacidade das empresas do setor de atender os direitos dos titulares de dados, de forma simples e acessível. Em especial, os direitos de acesso dos titulares e oposição ao tratamento de dados foram aspectos que mais se destacaram negativamente.

Também não ficou claro para a ANPD se as medidas de segurança adotadas pelos agentes de tratamento do setor farmacêutico são suficientes para proteger os dados pessoais coletados.

Todas as preocupações apontadas no documento se tornam mais relevantes e graves, se considerarmos que a associação e cruzamento dos dados coletados no contexto farmacêutico podem gerar dados de natureza sensível, relacionados à saúde e vida sexual do titular.

Próximos passos – medidas urgentes de adequação

A Coordenação-Geral de Tecnologia e Pesquisa encaminhou a nota técnica para apreciação da Coordenação-Geral de Fiscalização, de modo que eventuais medidas cabíveis possam ser tomadas, nos termos da Resolução CD/ANPD n. 1, de 28 de outubro de 2021. Não será surpresa se o setor farmacêutico passar a ser objeto de atenção especial da Coordenação-Geral de Fiscalização.

Pelo teor da nota técnica, está claro que a medida mais urgente e imediata para fins de adequação é a revisão das políticas e avisos de privacidade disponibilizados por cada agente de tratamento aos titulares. Em um segundo momento, a realização de uma revisão aprofundada das práticas de tratamento de dados, com registro formal das avaliações que foram realizadas para justificar o tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis por cada agente de tratamento, seria a medida esperada e recomendada.

Cabe lembrar que a ANPD já disponibilizou o regulamento sobre aplicação de sanções administrativas e pode, portanto, punir quem infringir a LGPD com multas e publicação da infração, além de outras medidas mais severas que podem implicar a suspensão do tratamento de dados.

Fontes
https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-divulga-nota-tecnica-sobre-tratamento-de-dados-pessoais-no-setor-farmaceutico/NotaTecnica4Atualizada.pdf/view

MP nº 869/2018: criação da ANPD e outras alterações na LGPD

Histórico – LGPD. Em 14 de agosto de 2018, a Lei n.º 13.709 foi publicada no Brasil. Essa lei foi logo alcunhada de Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, e sua edição, amplamente celebrada. Contudo, a LGPD, isoladamente, não esgota a questão de proteção de dados.

Por conta disso, o texto da LGPD submetida à sanção presidencial previa a criação de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (“ANPD”) para tratar dos detalhes associados com a lei. A criação da ANPD acabou sendo vetada no texto final da LGPD, sob a alegação de que havia um vício de iniciativa na criação de um órgão da administração pública pelo Congresso. Esse veto foi acompanhado de uma promessa de que seria editada uma norma que suprisse a lacuna criada. Essa promessa foi cumprida dia 27 de dezembro de 2018 com a edição da Medida Provisória n.º 869.

Assuntos tratados na MP. Apesar de ter sido prometido que a norma viria a tratar da criação da ANPD, e de fato tê-lo feito, a MP 869/18 também abordou outros assuntos relacionados com a LGPD. Tratou da figura do encarregado pelo processamento de dados, permitindo que empresas indiquem pessoas jurídicas para exercer essa função; alterou questões relacionadas com os dados de saúde, permitindo a comercialização desses dados em determinadas hipóteses; modificou previsões sobre a obrigatoriedade de revisão de perfil dos titulares dos dados, que agora pode ser feita por meio automatizado; ampliou significativamente a possibilidade de compartilhamento de dados pela Administração Pública com entidades privadas; e excluiu artigos da LGPD.

Além disso, a MP 869/18 também adiou o início da vigência da LGPD, de 16 de fevereiro de 2020 para 16 de agosto de 2020. Com isso, as empresas terão seis meses adicionais para se adequar à LGPD.

Porém, as regras para criação e estruturação da ANPD passaram a vigorar já no dia 28 de dezembro de 2018. A vigência quase imediata das regras relacionadas com a criação da ANPD se mostra acertada. Assim, essa autoridade poderá se estruturar e estar preparada para auxiliar empresas e indivíduos a se adequarem à LGPD antes de a lei começar a produzir outros efeitos.

ANPD. A Agência Nacional de Proteção de Dados Pessoais foi criada basicamente com a mesma estrutura pensada inicialmente, composta pelo Conselho Diretor, que passou de 3 para 5 membros, nomeados pelo Presidente da República; e pelo Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade – CNPDP. A estrutura regimental da ANPD ainda será definida por ato do Presidente da República. Até tal momento, a ANPD receberá apoio técnico e administrativo da Casa Civil para exercício de suas atividades. Apesar do aumento da estrutura da ANPD, a MP 869/18 determina que a criação da ANPD não deve acarretar aumento de despesa.

Status. Outra novidade foi a migração da ANPD, originalmente concebida como órgão integrante do Ministério da Justiça, para a estrutura da Presidência da República. Também foi alterada a previsão de que a ANPD seria uma autarquia especial, com independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica e estabilidade de seus dirigentes. Foi mantida apenas a autonomia técnica no texto da Medida Provisória.

Na prática, as alterações impactam pouco na independência da ANPD. O maior risco enfrentado pela ANPD será no controle das suas receitas, que poderão sofrer cortes e restrições pela Presidência da República com base em controle orçamentário.

Competência. A maioria das atribuições da ANPD previstas na Medida Provisória encontra similaridade com o texto vetado da LGPD. A ANPD continuará com a tarefa de interpretar a LGPD, receber e averiguar solicitações dos titulares de dados sobre violações da LGPD, podendo requisitar informações aos controladores e operadores de dados pessoais e aplicar sanções em caso de violação das disposições legais. Além disso, ficará responsável por editar resoluções para regulação específica de matérias de proteção de dados, podendo realizar consultas públicas, oitiva de entidades ou órgãos da administração pública.

Apesar da migração da ANPD do Ministério da Justiça para a Presidência da República, há previsão de que a ANPD deverá articular sua atuação com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça e com outros órgãos e entidades com competências sancionatórias e normativas relacionadas ao tema de proteção de dados pessoais. A ANPD não deixará, contudo, de ser o órgão central de interpretação da LGPD e do estabelecimento de normas e diretrizes para a sua implementação.

Fiscalização do Poder Público. A MP ainda retirou algumas regras que importariam em maior controle da ANPD sobre o compartilhamento de dados pela Administração Pública, mas sem impor vedações dessas atividades. Na prática, a ANPD continuará sendo a responsável por fiscalizar e controlar o uso de dados pessoais, tanto por pessoas naturais quanto jurídicas, no âmbito privado ou público.

Sanções. A Medida Provisória ainda prevê que a aplicação das sanções previstas na LGPD compete exclusivamente à ANPD, prevalecendo a competência da ANPD sobre as competências correlatas de outras entidades ou órgãos da administração pública. Com isso, por mais que exista uma cooperação para fiscalizar a aplicação da LGPD, evita-se que ocorram punições reiteradas sobre a mesma situação. Assim, aqueles que eventualmente cometerem alguma infração terão certeza de que deverão tratar com a ANPD para solucionar a questão.

Ainda há uma incerteza. Em geral, a edição da MP 869/18 se mostra acertada, mas também gera o risco de questionamentos caso não venha a ser convertida em lei dentro do prazo regulamentar. Nesse caso, em não havendo a criação definitiva da ANPD, poderemos enfrentar nova alteração do início da vigência da LGPD. Ou, ainda, termos a vigência da LGPD sem uma autoridade que acompanhe essa norma, tornando a sua fiscalização inócua e seus efeitos interessantes majoritariamente para o campo dos estudos. Resta aguardar se a nova legislatura aprovará ou rejeitará a proposta da MP 869/18.